Introdução à Heráldica

O que é a Heráldica, as suas origens e evolução


A Heráldica pode ser definida, de uma forma simples, como a ciência que estuda os Brasões de Armas; e um brasão é um emblema individualizado sujeito a regras específicas, usado a partir da Idade Média essencialmente por cavaleiros e nobres.

A utilização de determinados símbolos e cores como forma de identificar indivíduos, famílias, tribos ou clãs é um fenómeno universal e com raízes remotíssimas. É impossível determinar com rigor quando teve início a prática de empregar símbolos como marcas de posse; ainda antes do seu aparecimento nos escudos, encontram-se emblemas proto-heráldicos em selos (de cera ou chumbo) e sinetes. A Heráldica é um aspecto particular desta tendência humana, que se tornou, na Idade Média europeia, num sistema com regras precisas e aplicação generalizada.

Não existe uniformidade de opiniões entre os historiadores sobre o momento em que se pode situar o nascimento da Heráldica. Se observarmos, por exemplo, os escudos normandos dos guerreiros representados na chamada "Tapeçaria de Bayeux" (que na verdade é um bordado, elaborado por volta de 1077), pode notar-se que, embora todos os escudos estejam decorados, só muito poucos apresentam aquilo que se pode considerar um emblema proto-heráldico, nomeadamente um animal estilizado, porventura uma ave ou um dragão. Todos os outros mostram decorações incaracterísticas ou apenas cores variadas. Ainda que esta decoração dos escudos se possa dever apenas à imaginação de quem desenhou a "tapeçaria", leva a crer que não havia ainda regras heráldicas na decoração dos escudos.

Pormenor da Tapeçaria de Bayeux, c. 1077. Centre Guillaume Le Conquérant, Bayeux, França

Pormenor da Tapeçaria de Bayeux, c. 1077. Centre Guillaume Le Conquérant, Bayeux, França.
O cavaleiro da direita tem um escudo com uma rara decoração individualizada, que ainda não se pode considerar heráldica

Pormenor da Tapeçaria de Bayeux, c. 1077. Centre Guillaume Le Conquérant, Bayeux, França Pormenor da Tapeçaria de Bayeux, c. 1077. Centre Guillaume Le Conquérant, Bayeux, França

Pormenores da Tapeçaria de Bayeux, c. 1077. Centre Guillaume Le Conquérant, Bayeux, França.
Todos os escudos mostrados nestes dois pormenores, ainda que decorados, não apresentam quaisquer elementos heráldicos

Durante muito tempo foi corrente relacionar-se o início do uso de emblemas de natureza heráldica no Ocidente com as Cruzadas, devido ao contacto com a cultura oriental. É um facto que a heráldica tem semelhanças com a simbologia árabe; por outro lado, os Cruzados empregavam a cruz, sob diversas formas, como o meio para se reconhecerem, e a cruz é, de facto, uma das peças heráldicas mais antigas; mas, para além de uma coincidência cronológica, não está provado que tenha sido com as Cruzadas que o mundo medieval adoptou o sistema de identificação pessoal que se veio a tornar na Heráldica. Inclusivamente, os primeiros Cruzados já levavam consigo escudos pintados e emblemas heráldicos.

Cruzado inglês, de um saltério do século XIII proveniente da Abadia de Westminster (British Library, MS Royal 2A XXII fol. 220)

Imagem muito conhecida de um cruzado inglês, por volta de 1250, de um saltério proveniente da Abadia de Westminster (British Library, MS Royal 2A XXII fol. 220).
De notar as cruzes usadas no pendão e no trajo.
Foi com a ajuda de cruzados do norte da Europa que D. Afonso Henriques tomou Lisboa aos Mouros em 1147

Uma teoria recente (de meados do século XX...) faz recuar as origens da Heráldica para a invasão árabe de 711. A comprovar-se esta teoria, então a Heráldica teria nascido na Península Ibérica, o que explicaria a simplicidade e pureza heráldica de alguns dos brasões de armas mais antigos da Península (como, por exemplo, os escudos de Leão, Castela, Navarra e Aragão, e o escudo presumível de D. Afonso Henriques, as primeiras armas de Portugal).

Miniatura com uma representação hipotética de D. Afonso Henriques

Estatueta com uma representação hipotética de D. Afonso Henriques (miniatura Ignite, personalizada e vendida no eBay por shazmatty, 2020).
Note-se a cruz azul em campo de prata, o presumível brasão do nosso primeiro rei, pintado no seu escudo, mas também usado na bandeira e na túnica que usa sobre a cota de malha. Como toda a heráldica inicial, é extremamente simples

Seja como for, parece indiscutível que o uso organizado e codificado de símbolos heráldicos apenas se verificou a partir do século XII, como resultado da evolução de símbolos e marcas de posse muito mais antigas.

Mas a Heráldica não se pode dissociar da imagem dos cavaleiros medievais e, particularmente, da guerra e dos torneios.

Cavaleiro da Capela dos Ferreiros na Igreja Matriz de Oliveira do Hospital

Cavaleiro medieval, do século XIV, com o escudo dos Joanes (de Domingos Joanes). Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra

O uso de armaduras completas e, muito particularmente, dos elmos que cobriam completamente o rosto tornou necessário um sistema de identificação claro e facilmente visível de longe. Um cavaleiro medieval dentro da sua armadura era virtualmente impossível de distinguir, no calor de uma batalha ou desde a bancada de um torneio, de qualquer outro com uma armadura semelhante; os reis e chefes militares eram difíceis de identificar e seguir; durante um combate, amigos e inimigos confundiam-se. Estes factores levaram, desde meados do século XII, ao uso de emblemas pessoais pintados nos escudos e elmos e, por vezes, nas roupas do cavaleiro ou na cobertura da montada.

Representação da Batalha de Aljubarrota no “Recueil des croniques et anchiennes istories de la Grant Bretaigne, à présent nommé Engleterre” de Jehan de Wavrin, século XV - Londres, British Museum

Iluminura quatrocentista representando a Batalha de Aljubarrota (do “Recueil des croniques et anchiennes istories de la Grant Bretaigne, à présent nommé Engleterre” de Jehan de Wavrin, século XV - Londres, British Library, Royal 14 E IV f. 204 recto).
Mais do que uma representação fidedigna do histórico combate, esta iluminura revela a confusão que se podia gerar durante uma batalha medieval e a vantagem de os combatentes exibirem emblemas heráldicos bem visíveis.

Nos torneios, os elmos eram, quase sempre, encimados por uma figura em relevo (frequentemente uma peça do escudo), o timbre, que facilitava a identificação dos combatentes.

O Rei de Portugal em 1433, no Grand armorial équestre de la Toison d'Or (Biblioteca Nacional de Paris, ms. Ars. 4790, fol. 105)

O Rei de Portugal, vestido para um torneio com as armas reais (c. 1433).
Do 'Grand armorial équestre de la Toison d'Or' (Biblioteca Nacional de Paris, ms. Ars. 4790, fol. 105).
Note-se o dragão sobre o elmo, que é o timbre das armas reais portuguesas

A partir de meados do século XII, o uso de escudos pintados com símbolos pessoais generaliza-se rapidamente e é adoptado por toda a classe guerreira e, de uma forma geral, por toda a aristocracia (e mesmo por alguns municípios e corporações, que transpõem para selos os emblemas proto-heráldicos das bandeiras que empunhavam nas batalhas). Nesta fase, as armas de um cavaleiro representam-no a ele, individualmente, e, em certos casos, as terras que este possui e os seus laços de vassalagem. Não são, verdadeiramente, armas de família, nem se transmitem de pais para filhos. Cada novo cavaleiro assume as suas armas em função de diversos factores, como a linhagem, o território, as relações familiares ou os compromissos feudais. Por vezes, até, um cavaleiro não usava sempre os mesmos emblemas pintados nos seus escudos ou paveses de combate.

Isto poderia, facilmente, levar a duplicações e confusões. Para evitar tais inconvenientes, cedo se reconhece a necessidade de codificar os emblemas e cores do escudo, ao mesmo tempo que os monarcas descobrem que o poder de conceder brasões de armas é uma forma fácil e barata de recompensar os serviços dos seus cavaleiros, e chamam a si o poder de conceder novos brasões e autorizar o seu uso, acompanhando por vezes a doação de senhorios ou terras; os arautos-de-armas, funcionários régios, são encarregues de coordenar o uso de emblemas heráldicos e criam regras rígidas de concepção de brasões com vista à sua fácil visualização e identificação. Daí o uso de cores contrastadas e de figuras simples, características da heráldica mais antiga.

Este sistema de identificação pessoal torna-se, a partir de finais do século XII, hereditário e passa a representar uma família ou linhagem. No século XIII regista-se já o uso de brasões de armas por parte de mulheres, o que comprova que os mesmos se tinham tornado em verdadeiros emblemas pessoais, e não uma simples transposição das armas de combate dos cavaleiros. Tinha nascido a Heráldica.